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28/08/2019 às 17h09min - Atualizada em 28/08/2019 às 17h09min

A trágica história do casal que morreu abraçado fugindo das queimadas

Vinicius Lemos / BBC News
ARAGUAIA NOTÍCIA / AGUA BOA NEWS


A casa de madeira coberta por lona e palha representava a maior conquista da dona de casa Eidi Rodrigues de Lima, de 36 anos, e do companheiro, o produtor rural Romildo Schmidt, 39.

O casal morava no Assentamento Galo Velho, na zona rural de Machadinho D'Oeste, em Rondônia, município a pouco mais de 350 quilômetros da capital Porto Velho.

Eidi e Romildo viviam na região havia três anos. Eles construíram a casa logo após comprarem o terreno. Era a primeira residência própria deles, que anteriormente moravam em um sítio no município de Vale do Anari (RO), onde prestavam serviços rurais.

No assentamento, o casal se mudou para a residência de quatro cômodos - dois quartos, cozinha e sala; o banheiro ficava na área externa - junto com as três filhas.

As mais velhas, atualmente com 19 e 18 anos, são frutos de um relacionamento anterior de Eidi. A caçula, hoje com 13 anos, é a única filha da dona de casa com o marido.
 
O casal costumava dizer que estava feliz morando ali com a família. O assentamento é marcado por conflitos agrários, porém, Eidi e Romildo não costumavam ter problemas com a vizinhança. A maior preocupação deles era com as queimadas feitas na região, principalmente durante o período de estiagem.
 
Nos assentamentos da região rural de Machadinho D'Oeste, conforme pessoas que vivem no local, é comum que pequenos produtores coloquem fogo no mato para fazer renovação do pasto, ampliar áreas de criação ou para outras culturas agrícolas.

Desde que chegaram ao assentamento, Eidi e Romildo sempre temeram que as chamas pudessem atingir a propriedade deles. "Todo ano tinha essa questão de fogo, usado na região para limpar os lotes. Mas minha mãe e meu padrasto nunca haviam sido afetados com isso", relata Jeigislaine Rodrigues de Carvalho, de 18 anos, a segunda filha de Eidi.

No dia 13 de agosto, o maior temor do casal se tornou realidade. Eles viram a casa ser atingida pelas chamas e, enquanto tentavam fugir, morreram. "O fogo se espalhou muito rápido, porque estava ventando muito. Não deu tempo de eles saírem dali. Foi muito triste", diz Jeigislaine à BBC News Brasil.


Direito de imagem Arquivo pessoal - A casa que era a primeira residência própria de Eidi e Romildo

As mortes de Eidi e Romildo são exemplos trágicos das consequências das queimadas florestais no Brasil. Em 2019, foram registrados os maiores números dos últimos sete anos.

De acordo com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), foram registrados, até a terça-feira (27), 82,2 mil pontos de incêndio pelo país - o número representa 80% a mais que os registros do ano passado.

Rondônia é o quarto estado com mais registros de queimadas no Brasil. De janeiro até a segunda-feira (26), foram 6.441 focos de incêndio, segundo o Inpe.

A lista de estados brasileiros com mais incêndios neste ano é liderada por Mato Grosso (15,4 mil), Pará (10,7 mil) e Amazonas (7,6 mil). Tocantins teve registros semelhantes a Rondônia, foram 6.436. Os cinco fazem parte da Amazônia Legal - o conjunto de estados com áreas de Floresta Amazônica.

A Nasa apontou, na semana passada, que 2019 é o pior ano de queimadas na Amazônia brasileira desde 2010. Imagens da agência espacial americana mostram uma densa camada de fumaça sobre os estados de Rondônia e Amazonas.

A princípio, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) adotou postura pouco combativa ao tema. Porém, diante da repercussão internacional, dias depois mudou o tom de sua reação e autorizou, na tarde de sexta-feira (23), o uso de militares em uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) - quando há situações graves que demandam que o presidente da República convoque forças de segurança - para combater as queimadas na região da Floresta Amazônica.

Rondônia foi um dos estados que receberam ajuda federal para atuar no combate aos incêndios.

A história de Eidi e Romildo

Romildo conheceu Eidi pouco após ela chegar a Rondônia. A dona de casa morava em Araputanga, no interior do Mato Grosso, quando se separou do primeiro marido. Junto com as duas filhas pequenas, se mudou para o estado vizinho, para recomeçar a vida. "Ela escolheu vir para Rondônia porque temos muitos parentes por aqui", conta Jeigislaine.


Direito de imagem João Messias Monteiro - Moradia foi engolida pelas chamas em 13 de agosto 

Parentes contam que Eidi e Romildo se apaixonaram e começaram o relacionamento. Logo nasceu a primeira e única filha do casal. Com a família, se mudaram para o sítio em que o homem trabalhava como vaqueiro.

Desde que começaram a namorar, Eidi e Romildo planejavam comprar uma área para que pudessem cultivar alimentos e criar animais. Por uma década, juntaram dinheiro e conseguiram adquirir a propriedade na zona rural de Machadinho D'Oeste. Para eles, era apenas o começo do sonho de serem donos da própria terra.

Ali, viram as duas filhas de Eidi se casarem e deixarem a região para morarem com seus maridos. A mais velha se tornou mãe recentemente. A caçula continuou morando com os pais.

Na propriedade rural, o casal tinha pequenas plantações e criavam porcos e galinhas. O casal queria aumentar a casa, por isso juntou dinheiro para começar a comprar materiais.

Um dos objetivos era trocar a cobertura de palha e lona. "Eles tinham comprado muitas telhas e ripas de madeira recentemente", relembra Jeigislaine.

Vizinhos disseram à Polícia Civil que Eidi e Romildo sempre evitaram sair durante o período em que as queimadas eram mais constantes. Eles não queriam ficar longe para tentar proteger a casa de um possível incêndio.

Na zona rural em que está localizado o assentamento, as queimadas frequentes motivam os moradores a adotarem medidas para preservar seus patrimônios.

Os entornos de muitas propriedades possuem aceiros - técnica de retirada de vegetação para evitar propagação do fogo.

"O pessoal faz mutirões para apagar incêndios, usam água, deixam o entorno da propriedade somente com terra, para que o fogo não se alastre. Nesse período de incêndios, eles tentam de tudo para não perder o pouco que têm", relata o delegado Celso André Kondageski, da Delegacia de Machadinho D'Oeste.


Direito de imagem João Messias Monteiro - Queimadas têm sido frequentes na zona rural de Machadinho D'Oeste 

O incêndio

De acordo com os relatos de testemunhas, o fogo que atingiu a região em que Eidi e Romildo moravam começou por volta de 13h, no dia 13 de agosto. O assentamento, assim como toda a zona rural da região, está localizado em uma área desmatada da Floresta Amazônica. Em razão disso, as chamas costumam propagar com mais rapidez.

No horário, o vento estava forte e fez com que incêndio avançasse ainda mais rápido. Moradores registraram vídeos que mostram a destruição. Nas imagens, é possível ver que o fogo atingiu grande altura e tomou conta da área.

Na propriedade rural da família, Eidi e Romildo logo se preocuparam com as chamas. A filha mais nova estava na escola. Testemunhas contaram que a primeira preocupação do casal foi retirar as madeiras e as telhas que haviam comprado recentemente.

"Eu não estava por perto, mas vizinhos me contaram que eles quiseram preservar o que tinham comprado e colocaram em uma área afastada da mata, para que não queimasse também", conta Jeigislaine, que mora em um sítio a cerca de quatro quilômetros da casa da mãe.

Os relatos das testemunhas apontam que o fogo vinha em direção à parte traseira da propriedade rural de Eidi e Romildo. "Eles achavam que conseguiriam retirar o que haviam comprado e se salvar", pontua Jeigislaine. No entanto, conforme pessoas que presenciaram o fato, uma situação piorou ainda mais o fogo: um novo foco de incêndio teve início em uma área localizada em frente à propriedade do casal.

"Alguém deve ter aproveitado que estavam queimando para também colocar fogo, achando que nenhuma propriedade seria atingida. Esse outro incêndio piorou ainda mais a situação", diz uma testemunha, que não será identificada.

Conforme as apurações iniciais, o segundo incêndio inesperado surpreendeu Eidi e Romildo, que até então planejavam sair da propriedade pela frente, em direção contrária ao fogo. "Eles não tinham mais para onde fugir, porque rapidamente tudo foi tomado pelo fogo", narra Jeigislaine, com base em relatos de vizinhos da mãe.

O incêndio consumiu, segundo testemunhas, cerca de 43 hectares da região. A propriedade de Eidi e Romildo foi completamente destruída, assim como outros dois sítios da região. Diversos animais também foram atingidos pelas chamas e morreram carbonizados.


Direito de imagem João Messias Monteiro -'Tá difícil acreditar nisso tudo que aconteceu. Eu não quis ver os corpos carbonizados, nem minhas irmãs viram', diz filha do casal 

O Corpo de Bombeiros não foi ao local na data do incêndio, segundo testemunhas. "Ninguém chamou os bombeiros por medo do que poderia acontecer, por ser um caso de desmatamento. A Sedam (Secretaria de Desenvolvimento Ambiental de Rondônia) poderia vir junto, então acharam melhor evitar", diz um morador da região, que não será identificado.

"O fogo só parou depois que atingiu toda a mata da região. Estava muito forte. Acho que até os bombeiros teriam dificuldades para controlar. As chamas pararam sozinhas, quando acabaram as partes de mata daquela área.", completa o morador.

Segundo a testemunha, os bombeiros foram à região somente no dia seguinte, quando foram informados sobre as proporções do incêndio. No local, fizeram trabalho de rescaldo após a queimada.

A BBC News Brasil entrou em contato com o Corpo de Bombeiros de Rondônia para confirmar se eles foram ao local na data do incêndio ou se receberam algum chamado sobre o caso. Porém, a instituição não respondeu até a conclusão desta reportagem.

As mortes

No fim da tarde do dia 14, os corpos de Eidi e de Romildo foram encontrados carbonizados, na parte externa da propriedade rural deles. Desde a noite do dia anterior, eles eram considerados desaparecidos.

Eles foram as únicas vítimas fatais. Os moradores de uma das propriedades vizinhas conseguiram fugir logo que o fogo teve início. No outro sítio atingido, os moradores estavam viajando e não havia ninguém no local.

Os corpos de Eidi e de Romildo estavam juntos, a cerca de 100 metros de distância da casa deles. Para alguns, eles morreram abraçados. Porém, Jeigislaine acredita que o padrasto estava carregando a companheira.

"Acho que a minha mãe tinha passado mal, por ter inalado muita fumaça, e ficou muito fraca. O meu padrasto, então, deve ter carregado ela para tentar sair dali, mas os dois acabaram morrendo", diz a jovem.

A principal suspeita é de que a dona de casa e o marido tenham morrido por inalação de monóxido de carbono. Em seguida, com o avanço do fogo, foram carbonizados. "Mas ainda é preciso esperar os resultados das perícias para que possamos esclarecer todo o contexto", diz o delegado Kondageski.


Direito de imagem Arquivo pessoal - Animais que eram da criação de Eidi e Romildo; família conta que é comum que produtores rurais ateiem fogo para fazer renovação do pasto, ampliar áreas de criação ou para outras culturas agrícolas 

Jeigislaine relata que ainda tem dificuldades para aceitar que a mãe e o padrasto morreram. "A gente não consegue entender. Não caiu a ficha. Tá difícil acreditar nisso tudo que aconteceu. Eu não quis ver os corpos carbonizados, nem minhas irmãs viram, porque era uma imagem muito pesada para a gente", lamenta. Eidi e Romildo foram enterrados no dia seguinte à data em que foram encontrados.

Investigações

A Polícia Civil de Machadinho D'Oeste instaurou inquérito para apurar o caso. Testemunhas já foram ouvidas pelo delegado Kondageski. Ele aguarda as conclusões das perícias para auxiliar nas apurações. O principal objetivo é descobrir a origem do fogo na região e quantas pessoas incendiaram aquela área do assentamento na tarde do dia 13.

"Os responsáveis pelo fogo vão responder pelo incêndio, porque é crime ambiental, e podem responder também por homicídio doloso (quando há intenção de matar), porque uma pessoa que coloca fogo em uma área dessas sabe dos riscos que existem, inclusive o de matar alguém", pontua o delegado.

As apurações iniciais, segundo o delegado, apontam que o fogo teve início ao ser ateado em uma região de pastagem, logo se alastrou e atingiu as propriedades. "Mas ainda estamos investigando", frisa Kondageski.

Para o delegado, a morte do casal é um importante alerta sobre as queimadas. "Essa é a pior das consequências. Esses incêndios geram perdas ambientais e materiais, além de serem considerados crimes ambientais. É uma atitude imprudente, que vem sendo adotada há muito tempo", declara.

A família de Heidi e Romildo quer justiça. "Quem fez isso tem que pagar, porque essa atitude irresponsável acabou com duas vidas", declara Jeigislaine.

Desde a morte da mãe e do padrasto, ela tem cuidado da irmã mais nova. A mais velha está de repouso, por ter se tornado mãe recentemente.

"É muito triste ver a forma como a minha mãe e o meu padrasto morreram. Sempre fico vendo fotos deles no meu celular. Tá sendo muito difícil", lamenta Jeigislaine.
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